Do outro lado do mundo, brasileira é autorizada a educar os filhos em casa
Thais Saito, de 31 anos, tem quatro filhos e aderiu ao 'unschooling'.Governo
da Nova Zelândia autorizou mãe a tirar os mais velhos da escola.
Fonte: Vanessa Fajardo Do G1, em São Paulo
Thais
Saito mora na Nova Zelândia com os quatro filhos; Coral no colo, João (cabelo
comprido), Melissa (de vermelho) e José (cabelo raspado) (Foto: Arquivo
pessoal)
Trinta e um anos, quatro
filhos e a missão de garantir que as crianças aprendam sem ir à escola. Thais
Saito é brasileira e mora em Auckland, na Nova
Zelândia, há dois anos e meio. Há pouco mais de uma semana, ela
e o marido Angelo Damião, de 31 anos, também brasileiro, receberam ‘sim’ do
governo neozelandês ao pedido de tirar os filhos Melissa e João, de 9 e 8 anos,
da escola.
Para ter a ‘licença’, o casal
teve de apresentar um projeto bem detalhado de como fariam para ensinar as
crianças em casa. Eles listaram quais atividades seriam trabalhadas para
desenvolver competências em literatura, ciência e tecnologia, saúde e
bem-estar, artes e música, história e geografia, e alfabetização em matemática.
Cada área foi discriminada com uma série de ações, como desenhar mapas em
geografia, por exemplo, cozinhar e observar a alteração das matérias em
ciências, e fazer origami e montar quebra-cabeça para ajudar na alfabetização
em matemática.
Os brasileiros vão seguir a
mesma burocracia em julho, quando José completar 6 anos e atingir a idade
obrigatória, segundo a legislação da Nova Zelândia, para frequentar a escola.
De quebra, a caçula Coral, de 1 ano, vai acompanhar os irmãos e aprender as
lições da família.
Para educar as crianças,
Thais vai se basear no conceito unschooling (desescolarização),
cujo objetivo é ensinar por meio da vivência e não através de aulas
tradicionais. As habilidades e conhecimentos serão desenvolvidos por meio de
visitas a museus, parques, praias, observação da natureza, cozinhando, lendo,
fazendo arte, entre outras atividades.
Melissa e João frequentavam
uma escola da rede particular da Nova Zelândia até o mês passado. Os irmãos
gostavam das aulas, mas Thais e o marido cogitaram a hipótese de mudar as
regras da família por ideologia e também em função de José, que está prestes a
atingir a idade obrigatória para ir às aulas. Segundo a mãe, o terceiro filho
não está pronto para encarar esta etapa da vida, e o casal pretende entrar com
o pedido de unschooling assim que ele completar 6 anos. Se for
concedido, o garoto nem deve ser matriculado.
“José gosta muito de ficar em
casa, de ficar perto da gente. Chegamos para as crianças e falamos: ‘Vamos
pedir para o concil (governo de Auckland) para o Zé fazer o unschool.
Vocês gostariam de tentar também?' Foi uma festa!”
Thais diz que matriculou os
dois filhos na escola depois dos 5 anos mais por necessidade do que por
vontade. “Eu sempre gostei das férias, onde eles estavam comigo. Eu descobri
uma frase do John Holt [educador americano defensor do unschooling]
que é alguma coisa do tipo ‘não importa quão boa as escolas são, o lar é sempre
o melhor lugar para aprender’. Tomamos esta decisão por acreditar que a gente
pode fazer melhor. Tem muita gente que diz que o filho pediu para ir para a
escola, isso nunca aconteceu aqui em casa”, afirma.
"Na primeira vez que eu ouvi
alguém falar de unschool, eu assustei. Fiz mil perguntas, nunca
imaginei que faria. Hoje, depois de pesquisar bastante e conversar com muita
gente, descobri que não é difícil. Só precisa dedicação. E isso, bom, quase
toda mãe tem. Qualquer mãe que quisesse conseguiria" (Thais Saito)
O unschooling ainda
é novidade na vida de Thais. que tem aproveitado cada momento com as crianças
para ensinar e, principalmente, aprender. Para exemplificar, a brasileira conta
que há pouco tempo estava na praia com os quatro filhos quando eles viram um
bichinho azul na areia. “Minhas crianças acharam que era uma bexiguinha que
estava se mexendo por causa do vento. Só que vimos muitas e de vários tamanhos.
Perguntamos para uma moça. Ela, também mãe de crianças unschooled,
foi para o carro e voltou correndo com uma enciclopédia. Descobrimos que era
uma água viva.”
“Eles viram que elas vêm com
as ondas, a água vai embora e elas não conseguem ir junto. Descobriram que elas
se acumulam mais em alguns lugares, que elas ficam presas em algas, onde
queimam e onde não queimam. Depois pesquisamos juntos na internet sobre elas.
Nas quatro horas que ficamos na praia, eles aprenderam muito e ninguém precisou
falar nada. A gente aprendeu juntos. Eu também não sabia sobre a água viva.”
Thais e Damião pensaram por
três meses na possibilidade de aderir ao unschool, levaram mais um
mês para finalizar o pedido ao governo e três semanas até receber a resposta.
“Ir para a escola não fazia sentido em muitas coisas, por exemplo, na
socialização. Meus filhos têm muitos amigos na sala, mas não se relacionam com
ninguém que não seja do círculo. Eu não acredito que isso seja socialização.”
Entre as vantagens que ela vê
na técnica é o fato de que os filhos vão aprender em português –hoje eles
entendem o idioma, mas só falam em inglês–, além de poderem seguir o próprio
ritmo e não ter de acompanhar uma sala de aula. “Também vamos poder viajar e
fazer as coisas juntos. A regra é que as crianças recebam educação tão boa
quanto e na mesma frequência que as escolas do governo. A gente vai fazer muito
mais do que isso.”
Thais
com as crianças em Northland, na Nova Zelândia: todo passeio é um aprendizado (Foto: Arquivo pessoal)
Apesar de sentir a aprovação
dos filhos, Thais encara a novidade como projeto-piloto. Se no próximo ano as
crianças pedirem para voltar à escola, os pais pretendem atender a vontade
deles. “Na primeira vez que eu ouvi alguém falar de unschool, eu
assustei. Fiz mil perguntas, nunca imaginei que faria. Hoje, depois de
pesquisar bastante e conversar com muita gente, descobri que não é difícil. Só
precisa dedicação. E isso, bom, quase toda mãe tem. Qualquer mãe que quisesse
conseguiria. Eu não pretendo ensinar nada, só quero estimular a vontade deles
de aprender”, afirma.
A brasileira diz que estava
preparada para ser bombardeada de críticas quando tomou a decisão de tirar os
filhos da escola, mas recebeu mais manifestações de apoio do que de desaprovação.
“Incrível como tem tanta gente insatisfeita com as escolas no mundo inteiro!”
Thais, no entanto, está acostumada a contrariar o sistema e tomar decisões
não-tradicionais: depois de encarar uma cesariana para dar à luz a filha
primogênita, teve os três filhos seguintes de parto natural, em casa.
Gutto Thomaz, de 19 anos, é mágico(Foto: Arquivo pessoal)
'Unschooling' no Brasil
No Brasil, o unschooling não
é legalizado nem proibido. Sabe-se que algumas famílias o praticam, mas, como
não há regra, elas podem ser denunciadas à Justiça e terão de provar ao juiz
que não há abandono intelectual. Caberá ao juiz decidir que tais crianças podem
ou não ser mantidas fora da escola.
Em São Paulo, a educadora Ana
Thomaz atendeu, há 5 anos, ao pedido do filho Gutto para deixar de ir à escola.
Na época, ele tinha 14 anos, não gostava das aulas, dos grupos que se formavam,
e se sentia desestimulado. A mãe, a princípio, negou a vontade do filho, mas
depois topou o desafio de ajudá-lo a descobrir suas paixões em casa.
"Meu filho queria aprender algo de verdade. Fiz um projeto como educadora, tinha uma estratégia de vida, não separava o ensino da vida. Via o que ele estava precisando: amor por aprender. Ele era alfabetizado, mas nunca tinha lido um livro, achava que era uma coisa chata", diz Ana.
O garoto passou a ter aulas
de artes plásticas, música, filosofia, futebol. Tudo em casa. Mas existia uma
regra: ele não podia ficar se distraindo, por isso foram cortados televisão,
videogame e computador. "Ele topou e foi maravilhoso. Cinco meses depois,
ele descobriu a mágica, começou a estudar, hoje virou mágico profissional, faz
shows, ganha dinheiro e viaja pelo mundo."
Meu filho queria aprender
algo de verdade. Fiz um projeto como educadora, tinha uma estratégia de vida,
não separava o ensino da vida. Via o que ele estava precisando: amor por
aprender. Ele era alfabetizado, mas nunca tinha lido um livro, achava que era
uma coisa chata"
Ana Thomaz, educadora e adepta dounschooling
Para Ana, dificilmente o
filho se tornaria mágico se continuasse na escola. "Não entraria no ócio
criativo, não estava desperto nele a vontade de fazer algo. Ele criou a
realidade de que a vida era chata, pois tinha de ir para a escola aprender algo
que não interessava. A mágica começou a virar seu veículo para pensar, de uma
maneira mais ampla, a neurociência da mágica. O fato de, por exemplo, a pessoa
não ver algo na frente dela que é óbvio."
A educadora diz que, quando
tomou a decisão de ensinar Gutto em casa, teve como maior crítica a dela mesma.
"Pensava: será que não estou arriscando demais? As pessoas falavam: que
coragem!" A "briga" de Ana não é com a escola, e sim com uma
cultura. "Uma cultura de que é mais importante consumir do que produzir,
mais importante ter uma profissão do que ter uma vocação. A escola é ferramenta
dessa cultura e quero mudar esse paradigma."
Ana define o unschooling como
a prática de aprender 24 horas por dia, não escolarizar o aprendizado,
despertar a curiosidade da criança para que ela entre em contato com algo que
lhe interessa de verdade. Deu certo com Gutto.
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