Não têm qualquer
fundamento — e são mero resultado de ignorância — alguns preconceitos segundo
os quais os crioulos seriam dialetos, corruptelas ou uma
mistura de outras línguas (normalmente europeias). Do mesmo modo, é
errada a ideia de que os crioulos são línguas sem gramática.
Processo de formação
(Crioulização)
Uma língua crioula
nasce no contexto de uma comunidade que se tornou tão culturalmente
diversificada que não é possível adotar para o conjunto dessa comunidade
nenhuma das várias línguas naturais faladas por
cada falante. Contextos deste gênero existiram, por exemplo, durante os descobrimentos portugueses, quando escravos das
mais variadas origens eram separados das suas famílias e reunidos
aleatoriamente em fazendas e roças coloniais. Estas comunidades
não tinham a oportunidade de aprender corretamente a língua do colonizador e
desenvolviam um pidgin, isto é, um sistema linguístico rudimentar, com palavras baseadas na
língua do colonizador. Este sistema permitia estabelecer uma comunicação mínima
quer entre os membros da comunidade, quer entre estes e os colonos.
Quando um pidgin se estabelece
numa comunidade multilíngue, pode chegar um momento em que uma geração de
crianças dispõe apenas do pidgin para falar entre si. Nesse caso, quase
inevitavelmente, as crianças transformam o pidgin numa verdadeira língua,
completada por um vocabulário amplo e um
rico sistema gramatical. Essa nova língua natural é um crioulo e
as crianças que o criaram são os primeiros falantes nativos desse crioulo. O
processo pelo qual se transforma um pidgin em um crioulo é a crioulização.
Línguas crioulas são,
por uma definição mais ampla, linguagens originárias da necessidade de comunicação
forçada entre povos falantes de duas ou mais línguas diferentes. Desse
contacto, originalmente, surge o chamado pidgin, língua formada
normalmente a partir de uma base (entenda-se por isso a língua de maior
prestígio social) e geralmente composta de uma estrutura simples, adaptada
apenas às necessidades de comunicação entre esses povos. Nesse estágio os
falantes usam-na apenas como meio de comunicação entre os dois ou mais povos,
não sendo o pidgin, portanto, uma língua de casa ou de família. A tendência
desses falares, com o estabelecimento das comunidades na região, leva a duas
possibilidades:
A - Substituição
do substrato misto e do pidgin, resultantes do contacto linguístico, por uma língua
com força sócio-econômica para impor-se. É o caso, por exemplo, das línguas
europeias na maior parte dos países das Américas.
B - Atuação
reduzida da língua de maior prestígio e consequente cristalização do pidgin,
tornando-se língua materna de um determinado grupo social. A partir daí,
inicia-se a criação da chamada língua crioula.
Levando-se em conta a
possibilidade B, a língua daí resultante geralmente tem um vocabulário de base
com alto percentual de palavras de uma só língua (normalmente mais de 90%) e
uma gramática com elementos de mais de uma das línguas envolvidas no processo.
Contato com uma língua de
prestígio
Uma língua crioula
tem uma forte tendência para se manter em contato muito estreito com uma
língua de maior prestígio, geralmente aquela que lhe serviu de base. Esse
contato, que permitiu inicialmente a construção de uma estrutura lexical,
acaba por se intensificar à medida que as comunidades falantes do crioulo vão
sendo progressivamente alfabetizadas e escolarizadas na língua de prestígio.
Assim, o falante do
crioulo aprende a sua língua em casa e fala-a em família, mas é a língua de
prestígio que ele aprende, fala e escreve na escola. Em bons casos pedagógicos,
os falantes do crioulo acabam por se tornar bilíngues. Em maus casos (mais
frequentes até há bem pouco tempo), o falante crioulo não chega a aperceber-se
de que há duas línguas diferentes em jogo, mistura as duas e convence-se de que
aquilo que aprendeu em casa é uma corruptela sem gramática que
deve ser esquecida ou escondida. Deste modo, o mesmo contacto com uma língua de
prestígio que permitiu o nascimento da língua crioula, acaba por destruí-la e
condená-la ao desaparecimento.
O contato com a
língua de prestígio gera alguns fenômenos:
Code switching ou alternância entre
códigos
Muitos falantes de
línguas crioulas, sobretudo os escolarizados, alternam entre o uso da língua
crioula e o uso da língua de prestígio. Esta alternância faz-se no próprio discurso,
isto é, o falante pode iniciar uma conversa numa das línguas e, a qualquer
momento, introduzir a outra para mais tarde voltar à primeira. Esta alternância
é motivada, sobretudo pelos tópicos do discurso.
Interferências
Os falantes crioulos
acabam por fazer uso de estruturas sintácticas e de léxico da língua de
prestígio enquanto falam a língua crioula e vice-versa. Este fenômeno, em
conjunto com o code switching é extremamente prejudicial em
muitas situações. Até há bem pouco tempo, era comum crianças cabo-verdianas serem
desconsideradas em escolas portuguesas por
falarem mau português e por não compreenderem nada do que se
lhes era dito. A terrível situação gerava-se porque a criança não tinha sequer
consciência de que estava a falar uma língua diferente da do seu professor. Por
sua vez, o professor ouvia frases de português correto (interferências da
língua de prestígio na língua crioula) entre o resto do discurso
incompreensível e, julgando que a criança entendia português, era incapaz de
perceber por que motivo não aprendia esta a matéria ensinada nas aulas.
Descrioulização
Sofrendo de um fraco
prestígio, que chega ao ponto de não haver uma consciência de que um crioulo é
uma língua e não um dialecto menor; torpedeadas por constantes interferências de
uma língua de prestígio que vai impondo o seu léxico e a sua sintaxe; sem
instrumentos normativos como gramáticas e dicionários e sem escolas em que
sejam ensinadas, as línguas crioulas tendem para o seu desaparecimento. Este longo
processo pelo qual a língua crioula se torna cada vez mais parecida com a
língua de prestígio, até que não restem diferenças, é denominado dedescrioulização.
A descrioulização pode
ser observada através de um contínuo de variedades da língua crioula, desde
aquelas em que o crioulo se mantém mais distante da língua de prestígio, até
àquelas em que já nem é possível determinar se ali está um crioulo ou apenas
uma maneira estranha de falar a língua de prestígio.
Ao dialecto de uma
língua crioula que está mais próximo da língua de prestígio, chama-se acrolecto.
Diz-se desta variedade que é um crioulo leve.
Denomina-se, por sua
vez, basilecto o dialecto que se mantém mais distante da
língua de prestígio. É conhecido como crioulo fundo.
Finalmente, aos
dialetos intermédios dá-se a designação de mesolectos.
Exemplos:
·
Acrolecto (crioulo leve):
·
tiatu é um meiu efikas di edukason
·
kes omis grandis
·
Basilecto (crioulo fundo):
·
tiatu é um manera bon di eduka algem
·
kes omi grandi
Nota: frases em
crioulo caboverdiano facilmente entendidas por falantes de língua portuguesa e com ortografia proposta por Dulce Pereira,
docente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Um falante de crioulo
pode dominar vários destes dialetos, sendo capaz de produzir um crioulo mais
fundo ou um mais leve. Este é um dos motivos que explica a
ideia de flexibilidade associada às línguas crioulas (que, por vezes, pode
levar a noções erradas, como a de que um crioulo é uma língua sem
gramática).
Características universais
As línguas crioulas possuem as
seguintes características:
·
Sintaxe SVO (Sujeito, Verbo, Objeto)
·
Ausência de flexões de gênero
·
Ausência de acordo de número
·
Ausência de flexões verbais
·
Uso de item lexical semanticamente associado ao
corpo humano, ou a partes do corpo, para assinalar a reflexividade
·
Morfemas interrogativos bimorfêmicos
·
Produtividade da reduplicação
·
Distinção entre verbos estativos e não estativos
·
Produtividade do morfema zero
As línguas crioulas no mundo
Uma curiosidade sobre
a história dessas línguas é que a fala usada durante as Cruzadas, a denominada lingua franca, era uma espécie de pidgin
com base no italiano, que posteriormente
foi desaparecendo, embora linguagens usadas por mouros residentes
em Portugal ainda no século XVI deem indícios
de que não houve, ao menos, um desaparecimento repentino após o fim desse
período.
A grande maioria das
línguas crioulas existentes tem por base o inglês. A seguir vêm os de
base francesa. Os crioulos de base portuguesa vêm depois, em número bem mais reduzido na atualidade. Embora
tenham sido usados em grande escala, com as reconquistas e as invasões neerlandesas e inglesas, além da decadência
do império português, tais falares foram gradativamente sendo
substituídos, ou relexificados, pelas línguas dos novos colonizadores. Um
exemplo disso são os crioulos ingleses do Suriname e o
crioulo espanhol das Filipinas, todos advindos claramente de uma relexificação de um substrato
português crioulizado.
A maior curiosidade é
a quase inexistência de crioulos espanhóis. Embora a Espanha tenha ocupado
um vasto território durante a sua expansão marítima, o processo comum às outras
colônias (inglesas, francesas, neerlandesas, etc.) não se repetiu com tal força
nos territórios conquistados. As línguas crioulas de base hispânica tiveram
origem ou foram influenciadas por um crioulo português pré-existente. Mesmo em
lugares onde a colonização portuguesa não se fez presente com grande alcance de
dominação cultural, como em Palenque, Colômbia, ainda hoje se fala
um crioulo espanhol no qual se vêem claras influências portuguesas. E, mais
adiante, temos o papiamento, das Antilhas Holandesas (grande percentual de palavras portuguesas,
às vezes fundidas com as espanholas de tal modo que não é clara a origem),
entre outros poucos.
Pelo menor prestígio
social, e pela ausência de vocábulos técnicos, poucas línguas crioulas foram
até hoje adotadas como oficiais. Há exceções, como o crioulo do Haiti, que se tornou
oficial há alguns anos. O preconceito existente, por vezes dentro das próprias
comunidades falantes, faz com que tais línguas sejam pouco a pouco substituídas
pelas línguas de prestígio de cada país, num processo de descrioulização. A
inexistência de ensino escolar da maior parte dessas línguas (tradicionalmente
orais) e a crescente globalização abrem cada vez menos horizontes às línguas
crioulas e a maior parte delas, se não desapareceu, está seriamente ameaçada de
extinção.
Estudos nas línguas
crioulas à volta do mundo sugerem que estas têm grandes semelhanças a
nível gramatical, suportando assim a teoria da Gramática Universal. Contudo, os críticos argumentam que o suporte a
esta teoria é largamente baseado em crioulos derivados de línguas europeias,
principalmente inglês e português, e que os crioulos de base extra europeia
como a língua nubi ou a língua sango mostram menos
semelhanças."
Autor desconhecido
Bibliografia
·
Pereira, Dulce, «Crioulidade (Palavras Leva-as o Vento…)», Comunicação
ao Encontro sobre a Crioulidade, Homenagem a Mário António Fernandes de
Oliveira, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 6 de Fevereiro de
1997
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